Texto em resposta a Publicação “Vegetarianismo e Veganismo: é possível para as crianças? Publicado em 6/03/2018 no site Pediatra Orienta, blog da Sociedade Brasileira de Pediatria
Recentemente o site Pediatra Orienta (www.pediatraorienta.org.br) publicou um texto intitulado “Vegetarianismo e veganismo: é possível para as crianças?
Segundo o corpo de conhecimentos do Departamento de Nutrição da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) seguem algumas observações sobre o conteúdo do texto apresentado.
O vegetarianismo na infância gera muitas dúvidas nos pais e profissionais que atendem e acompanham a criança. É função da SVB e de todos os profissionais de saúde, orientarem a forma segura de organizar a alimentação, seja vegetariana ou não, pois igualmente em qualquer dessas abordagens, deficiências podem levar a distúrbios na evolução da criança.
A Academy of Nutrition and Dietetics (2016) e a American Dietetic Association; Dietitians of Canada (2013), reconhecem que a alimentação vegetariana como adequada em todas as fases da vida incluindo a infância, contanto que todos os cuidados alimentares e adequações nutricionais sejam realizados, como deve ser preconizado para qualquer tipo de dieta.
A “dieta macrobiótica” não se enquadra na classificação de dieta vegetariana, pois permite incluir o consumo de peixes na alimentação.
Entre as décadas de 70 e 80 alguns estudos (Relatos de Caso) publicados por Zmora et al., 1979, Shinweell e Gorodischer, 1982 e Dwyer et al., 1992, apresentaram desfechos negativos para crianças, com referência a deficiências graves e até morte.
Porém vale a pena observar nestes relatos, que as crianças foram classificadas erroneamente como vegetarianas, e pertenciam a seitas religiosas que não só excluíam carne, leite e ovos da alimentação, mas as expunham a grande restrição calórica. Nos relatos apresentados, as crianças que não recebiam leite materno, também não recebiam fórmulas para lactentes e/ou suplementos recomendados para primeira infância, adequando a qualidade e quantidade nutricional. A substituição do leite materno aos 3 meses de vida por suco de couve com maçã foi um achado em alguns desses relatos. A mesma substituição, adicionada de caldo de carne, deixaria a dieta classificada como onívora, causando os mesmos problemas encontrados nessas crianças veganas. Assim, fica exposto que esse tipo de restrição trata-se de irresponsabilidade parental, desconhecimento técnico parental, e isso em nada representa o vegetarianismo.
Esses estudos, que apresentam muito baixa força de evidência científica para causalidade, e que não foram corroborados em ensaios clínicos randomizados controlados posteriores, foram citados como fontes de referências nas revisões e artigos publicados em anos posteriores, gerando informações distorcidas, e assim, equivocadas, sobre a adequabilidade do vegetarianismo na infância.
As condutas alimentares, inadequadas quantitativamente e qualitativamente, gerariam por si só problemas em crianças em desenvolvimento mesmo que a carne (no caso das dietas macrobióticas, o peixe, ou mesmo em se tratando de uma dieta onívora) fizessem parte do cardápio.
As instituições que apoiam o vegetarianos como a ADA (Associação Dietética Americana) e a SVB (Sociedade Vegetarian Brasileira) no Brasil, apoiam uma nutrição equilibrada e saudável na infância, recomendando a amamentação ou o uso de fórmulas infantis e suplementação de acordo com as recomendações de instituições referências nas áreas médica e da nutrição. Nossa função, como entidade e como órgão de referência na orientação profissional é educar o profissional de saúde na condução da dieta vegetariana ou vegana de forma adequada e segura, e não assustá-los com estudos que não condizem com o que é, de fato, uma dieta vegetariana.
Quanto a algumas deficiências citadas no texto apresentado:
FERRO
Sendo o ferro um micronutriente fundamental para o desenvolvimento infantil, sua deficiência está relacionada à anemia que é considerada mundialmente a carência de maior importância e elevada prevalência em crianças, principalmente menores de dois anos de idade (WHO, 2008). Estima-se que 39% das crianças menores de 05 anos e 48% das crianças entre 5-14 anos de idade, estejam anêmicas (OMS, 2001). Por isso existem políticas nacionais como a suplementação de ferro e ácido fólico nas farinhas comercializadas no Brasil e políticas da organização Mundial da Saúde quanto à suplementação de ferro para as crianças na primeira infância. Essas recomendações são feitas para crianças onívoras, já que existem políticas de saúde coletiva voltadas à essa população. O mesmo ainda não acontece com as populações vegetarianas.
As crianças vegetarianas estritas ingerem o ferro unicamente através de alimentos vegetais. Como o ferro não heme é o único ferro utilizado por vegetarianos estritos e os fitatos, muito presentes em alimentos integrais, é o principal fator que inibe a absorção de ferro, há uma preocupação teórica de que essa alimentação possa acarretar deficiência de ferro nos que a praticam.
Porém, segundo levantamento da totalidade dos artigos publicados em bases de dados indexadas, desde a década de 70 associando ferro e anemia em crianças vegetarianas, não é possível afirmar que crianças vegetarianas apresentam maior incidência de anemia ou deficiência de ferro quando comparadas ás onívoras.
O Autor AMBROSZKIEWICZ et al. 2016, relatou também que não houve sinais de anemia nas crianças estudadas, que apresentaram hemoglobina normal, com exceção de 1 vegetariano e 1 sujeito do grupo controle que teve hemoglobina abaixo de 11,5 g /. Apesar disso, 11 (25,6%) vegetarianos e 7 (15,2%) onívoros tiveram diminuição da concentração sanguínea de ferro.
Ou seja, apesar dos níveis mais baixos de ferro e ferritina sanguíneas, as crianças vegetarianas não apresentaram maiores chances de desenvolvimento de anemia quando se compara crianças vegetarianas e onívoras.
O achado de ferritina mais baixa em alguns casos demonstram a menor atividade de IL-6 e consequente de secreção e atividade biológica de hepcidina, reduzindo a visão da ferritina como falso marcador do melhor estado nutricional de ferro.
É prudente que crianças vegetarianas também utilizem alimentos fortificados com ferro e façam a suplementação de ferro, como preconizado pelo Ministério da Saúde para todas as crianças onívoras, nas mesmas doses indicadas.
VITAMINA B12:
A vitamina B12 é de vital importância para a saúde e desenvolvimento infantil. Suas fontes dietéticas principais (carnes, leite e ovos) não estão presentes na alimentação vegetariana estrita (vegana). Porém os estudos confirmam que a suplementação é altamente eficaz para a manutenção de bons niveis dessa vitamina.
A criança vegetariana ou vegana vai receber B12 através do leite materno ou fórmula infantil, e a suplementação após os 6 meses de vida. Muitos suplementos comerciais destinados a uso pediatrico já incluem a vitamina B12 em sua formulação, visto que a deficiência tem sido recorrente na população em geral, acometendo mais de 40% da população onívora na América Latina. A título de curiosidade, a deficiência na propulação vegetariana é de 50%, ou seja, apenas um pouco acima da encontrada na onívora.
Essa vitamina é, de fato, fundamental para o nosso organismo e todas as diretrizes de acompanhamento de crianças vegetarianas recomendam sua suplementação. Para manutenção da adequabilidade de dietas infantis (mesmo as onívoras), entidades nacionais e internacionais já recomendam suplementação (ex Vitamina A, D, Ferro, entre outras) como meio eficaz para a prevenção e saúde. Pela visão nutricional, vitamina B12 deve ser sempre prescrita para a criança vegetariana, mas pela visão epidemiológica, ela deveria estar presente nas recomendações de ingestão de todas as crianças onívoras também.
DEFICIT DE DESENVOLVIMENTO E CRESCIMENTO
As crianças que foram submetidas a dietas com restrição calorica, dieta a base de alimentos crus e macrobioticas apresentaram deficit de crescimento e desenvolvimento. No entanto, os estudos com crianças Lacto-ovo-vegetarianas expostas a alimentação com adequado valor calórico e nutricional apresentam crescimento semelhante as crianças onívoras.
Em relação às crianças veganas apesar de existirem ainda poucos estudos, os achados mostram que estas apresentam crescimento dentro dos padrões de peso e altura, assim como constatado nos posicionamentos das Sociedades Internacionais já referidas.
É necessário fazer ajustes com relação à composição do prato infantil de forma a priorizar os alimentos mais densos em quilocalorias (cereais, leguminosas, óleos) em detrimento dos mais pobres (verduras e legumes) nas refeições principais. Esse ajuste garante a adequação calórico-protéica desde o início da alimentação complementar.
PROTEÍNA E AMINOÁCIDOS
A avaliação do conteúdo de aminoácidos dos alimentos vegetais, tendo em vista sua comparação com a clara do ovo (proteína de referência) gerou muitos erros nutricionais de interpretação, trazendo a falsa ideia de que eles são carentes ou ausentes em alguns aminoácidos. Isso não se confirma bioquimicamente em tabelas nutricionais de aminoácidos (que não são estudadas nos cursos de nutrição e nutrologia) e ainda traz a ideia distorcida de que é necessário combinar muitos alimentos vegetais para a obtenção de todos os aminoácidos.
A comparação do teor de aminoácidos com a necessidade humana, e não de um alimento com outro (ou com a necessidade de roedores), e a avaliação do teor de aminoácidos em cada alimento separadamente, nos mostra que não há dificuldade alguma na obtenção de todos os aminoácidos.
Segue abaixo uma tabela contendo o teor aproximado de aminoacidos presentes em um cardápio vegano para crianças de 6 a 12 meses. Nessa mesma tabela é apresentada a comparação com o teor apresentado em um cardápio e receitas oferecidas no Manual de Orientação do Departamento de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Assim, é possível analisar que todos os aminoácidos essenciais são ofertados em ambas as dietas, lembrando que os valores oferecidos através do leite materno não foram incluídos no cálculo, aumentando ainda mais a margem de segurança.
CONCLUSÃO
A opção pela alimentação vegetariana apresenta incrementos crescentes e a Sociedade vegetariana Brasileira (SVB) continuará a atuar de forma séria e em apoio a profissionais, sempre embasados em ciência de boa qualidade, com ética e responsabilidade.
O preconceito e os mitos, mesmo dentre os profissionais que atuam no acompanhamento infantil, que envolvem o vegetarianismo na infância precisam ser desmistificados com seriedade e solidez cientifica consistente.
A alimentação vegetariana bem planejada, assim como cientificamente endossada por renomadas entidades, comprovadamente não oferece riscos a criança, assim como qualquer outra dieta, inclusive onívora, bem planejada.
Nós, da SVB, trabalhamos para levar informações e orientar as famílias que aderem ao vegetarianismo, afim de tornar esta prática ainda mais segura e saudável para as crianças, corrigindo informações desprovidas de embasamento científico que circulam na mídia.
Convidamos assim, e nos seria de grande honra, pela expertise, a sua presença, para contribuir com as próximas discussões cientificas sobre a alimentação vegetariana na infância, promovidas pelos profissionais do nosso departamento.
Como adequado posicionamento e conduta acadêmica para constar em discussões e textos apresentados em meios digitais, segue abaixo uma lista de referências científicas sobre o tema abordado, que foi por nós utilizada para referenciar o texto acima.
Atenciosamente;
Texto elaborado pelo Departamento de Nutrição Materno Infantil da Sociedade Vegetariana Brasileira com colaboração e consultoria científica dos citados abaixo:
Responsável:
Dra. Aline C. Vieira
Nutricionista, Pós Graduada em Nutrição Materno infantil; Conselheira em amamentação; Coordenadora do Departamento de Nutrição materno infantil da SVB.
Colaboradores:
Dr. Eric Slywitch
Médico, doutorando em nutrição (Unifesp-EPM), mestre em Nutrição (UNIFESP-EPM), especialista em nutrologia, nutrição enteral e parenteral, pós-graduado em endocrinologia, nutrição clínica.
Dr. Lucas Caseri Câmara
Doutorando em Saúde Baseada em Evidências (UNIFESP / EPM). Médico, Especialista em Medicina do Exercício e do Esporte, e em Medicina Física e Reabilitação (UNIFESP).
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